Conhecendo o “Diário de Ideias”, com a professora Luciana Muniz (ESEBA/UFU)

O premiado projeto que apresenta a possibilidade de alfabetização a partir do protagonismo do estudante e da interdisciplinaridade.

Tássita de Assis Moreira - UFU

Aline Alves Ramos - UFU

Cinthia Cristina de Oliveira Martins - UFU

abril de 2020

A Profa Dra Luciana Muniz com as produções de seus alunos em volta. Jan 2019. Fonte: www.lucianamuniz.com.br

Em 2018, a professora foi uma das vencedoras na 11ª edição do Prêmio Professores do Brasil, pela proposta do projeto “Diário de Ideias: linhas de experiências”. O projeto concorreu na categoria Ensino Fundamental: Anos Iniciais – Ciclo de Alfabetização 1º, 2º e 3º anos e já havia vencido a etapa estadual e a regional. Além do destaque dado ao projeto, Luciana pode conhecer espaços escolares em outros países, o que possibilitou o estabelecimento de parcerias significativas.

“Quando eu recebi esse prêmio em 2018, recebi essa premiação com muita responsabilidade, porque pensei esse prêmio não é só meu, esse prêmio é da Universidade Federal de Uberlândia e de todas aquelas pessoas que convivem comigo

As trajetórias de vida das professoras, por vezes, podem falar bastante a respeito de suas práticas pedagógicas, bem como do desenvolvimento de metodologia que considere a singularidade e a criatividade do estudante. Com a professora Luciana não é diferente. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, com doutorado em Educação pela Universidade de Brasília, Luciana Muniz atua como professora e desenvolve projetos na Escola de Educação Básica (ESEBA/UFU) desde 2005.

Em suas pesquisas, Luciana tem buscado compreender “A expressão da criatividade na aprendizagem da leitura e da escrita e suas inter-relações com o desenvolvimento da subjetividade”, por meio da teoria da criatividade, que “possibilita criar vários instrumentos, então nós criamos esse instrumento específico pra compreender a expressão da subjetividade no desenvolvimento da aprendizagem da leitura e da escrita”. O “Diário de Ideias” foi criado, a partir da tese de doutorado da professora Luciana, como um recurso metodológico que permite que os estudantes se expressem e que o professor compreenda o desenvolvimento desses estudantes, durante esse processo. Portanto, “é um espaço autoral para a criança se expressar de uma forma livre, em que possamos conversar com ela sobre o que ela traz da sua história de vida, daquilo que ela vive, dos diferentes contextos sociais que ela participa, e como tudo isso está envolvido com a aprendizagem dela”.

A inspiração para o projeto despontou das observações das atitudes das crianças ao escreverem e fazerem outras formas de registro em pedacinhos de papel recolhidos no chão ou no lixo, embaixo da carteira, registros diferentes daqueles feitos no caderno de atividades formais da escola. Assim, Luciana pensou “porque não criar um instrumento em que a criança possa se expressar de uma forma livre, sem necessariamente didatizar o processo”, ou seja, registrar exatamente aquilo que a professora solicita.

Dado que uma de suas principais preocupações é o processo de alfabetização, a professora destaca que escolheu os anos iniciais para desenvolver sua pesquisa que deu origem ao Diário de Ideias, porque “pensava que deve existir uma forma diferente pra aprender a ler e a escrever, não como um processo de reproduzir ideias, mas como um processo de se expressar, de se comunicar”. Luciana percebe como uma responsabilidade dos professores a busca por metodologias diferentes que incentivem o aprender “com foco na autoria e protagonismo dos estudantes e com foco no processo de comunicação e expressão das crianças”, procurando contribuir para a redução das altas taxas de analfabetismo do nosso país.

Montagem de fotos de páginas dos Diários de ideias, feita pela professora Luciana e postada em seu sítio eletrônico www.lucianamuniz.com.br. Jun 2019.

O “Diário de Ideias” também proporciona a integração entre as várias disciplinas que compõem o currículo escolar. Então é possível, no processo de alfabetizaçãodialogar com conteúdos relacionados as disciplinas de História e Geografia, entre outras. Assim, é possível conectar a história de vida e contexto de existência do estudante com as atividades escolares, por meio de um planejamento docente que considere a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade: “Então, não é algo desvinculado, quando a gente traz o Diário de Ideias com essa possibilidade da criança exercer seus registros autorais em diferentes contextos que ela vive, quando a gente vem pra essa roda conversareu conheço diferentes espaços, diferentes lugares, diferentes ambientes, diferentes contextos que cada um ali vivencia. Culturalmente nós estamos nos constituindo juntos. Eu vivendo a experiência das crianças de diferentes lugares e elas vivendo a minha, esse compartilhar experiências faz parte desse processo de trabalho interligado com os conteúdos”. 

Luciana ainda aponta que estudar o desenvolvimento da criatividade é um verdadeiro desafio porque tende a exigir algo nato, tal como um produto, mas para a professora não é necessariamente assim. No encontro com a teoria da subjetividade, Luciana entendeu qua criatividade se expressa ela não é um domnão é algo que a gente nasce, então isso é muito bom, todos nós podemos ser criativos, e ela é algo que se expressa a partir da nossa subjetividade humana”.

Sem dúvidas, toda implantação de uma nova metodologia passa por desafios. De acordo com a professora Luciana, um deles é o “desbravamento” do mundo da educação, marcado por paradigmas e formas muito estruturantes de atuação, quando não completamente engessadas. Diante disso, Luciana destaca a necessidade de tocar as professoras para que sintam a necessidade da mudança. O projeto recebeu tanta visibilidade que tomou forma de programa e ganhou apoio da Secretaria Municipal de Educação, desenvolvendo-se como uma proposta de qualificação para professores de Uberlândia e região. Durante o desenvolvimento do programa de ensino muitos professores relataram distanciamento dos alunos e alunas, o que por vezes gerava conflitos e um abismo na comunicação, chegando a dizer que “não conheciam seus alunos”. 

A professora Luciana com a turma do 1º ano de 2018

Após o contato com o projeto “Diário de Ideias” as relações mudaram: “Hoje, é uma relação [da professora] totalmente diferente com essa criança, porque entende a história de vida dela, o contexto social que ela vive, todo esse ambiente que ela traz pra escola… e aí, quando a criança começa a falar das suas experiências ela também se vê diferente na escola, porque se vê integrada… aquela ideia ativa de participar”. O projeto Diário de Ideias, ao partir de uma tese e inspirar outras pesquisas, inclusive com outras universidades (UnB) e outros países (Finlândia), nos mostra que é preciso abrir o campo de possibilidades, não nos acomodar com o que estamos fazendo. Para Luciana, essas relações transcendem os muros das escolas e das universidades, principalmente aproximando os membros das famílias da realidade escolar das crianças.

A professora no 11º Prêmio Professora do Brasil, em 2018. Imagem publicada em jan 2019, em www.lucianamuniz.com.br.

Após receber o prêmio a professora conta que recebeu muitos convites, mas que precisava pensar nos formatos que configurariam a implementação dessa metodologia, prezando principalmente pelas relações humanas que se estabelecem entre as pessoas envolvidas: “Então, nós construímos, junto com a Secretaria Municipal de Educação, um caminho de formação para os professores. Nós realizamos no ano de 2019, um projeto piloto em uma escola do Canaã [bairro situado na cidade de Uberlândia], em que abarcamos mais de quatrocentas crianças, que hoje experienciam o “Diário de Ideias”, a metodologia, com mais de quinze professores envolvidos… assim fizemos uma formação in loco nessa escola”.

Luciana ainda destaca que é um projeto em constante desenvolvimento, “um processo contínuo de trabalho com esses professores”. Ao criar uma metodologia de formação, Luciana destaca que busca aproximar os professores do propósito do programa Diário de Ideias: “Na metodologia da formação… a ideia é criar um espaço autoral e protagonista para esse professor, é pensar que toda a escola que desenvolver essa metodologia tenha em mente qual é a autoria e o processo que estaremos implementando aqui?, porque o processo precisa ser nosso para depois ele ser do outro também”. Desta forma, a partir da existência de um convênio com a Secretaria Municipal de Educação, o programa consegue ampliar seu alcance. Só neste ano de 2020, pretendem alcançar vinte escolas, sendo assim mais de setenta professores e mais de dois mil estudantes participarão desse processo. 

As propostas desse programa também são refletidas em outros projetos, principalmente dentro da ESEBA/UFU, como o projeto “Transformando lixo em brinquedo”, intitulado pelas próprias crianças. Esse projeto de cunho social desenvolve  as perspectivas de cuidado com o meio ambiente, encontradas nas atitudes dos próprios alunos. Outro projeto relevante é a gravação do CD e do DVD Diário de Ideias, que conta com a participação dos estudantes e do cantor Luiz Salgado: “ [O projeto] é muito regional, traz assim o caráter da linguagem mineira, daquilo que a gente vive no contexto, porque as nossas crianças são de Minas [Gerais], então as crianças que trazem outros contextos e a gente vai trazendo para a linguagem musical”.

Para pensar a articulação entre prática docente e pesquisa, que é um dos desafios que se tem colocado para a formação de professores, é possível perceber a grandeza desse programa e a diversidade que consta em suas diferentes ações. O “Diário de Ideias” alia criatividade, curiosidade, singularidade e reflexão, na busca da autonomia de professores e alunos e, nesse caminho, torna-se uma metodologia que aproxima a teoria da prática, de forma que elas estejam paralelas com o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita.

O projeto educativo apresentado pela professora Luciana se constitui, assim, como uma possibilidade de contato e envolvimento entre professores e estudantes, e como uma forma de orientar professores para que pensem em suas ações e em seu lugar na atualidade, que reflitam e que não reproduzam acriticamente o modelo que lhes é ofertado na sua formação. Esse envolvimento ajuda na construção de competências e saberes docentes, capazes de promover condições favoráveis para a busca de um ensino em que o aluno seja protagonista do seu próprio processo de socialização e principalmente construtor da sua história.

Com isso, dar visibilidade ao protagonismo e às produções infantis nos contextos educacionais, tal como proposto no “Diário de Ideias”, é fundamental para a constituição de práticas educativas que reconheçam e valorizem as histórias de vida das crianças, de modo a compartilhar experiências e promover o diálogo interdisciplinar. No ensino de História e Geografia, por exemplo, o projeto pode contemplar o contexto em que o aluno está inserido, visando ampliar o conhecimento de si e dos outros, além de compreender e problematizar as diferenças.