Pelo direito de aprender e ensinar História e Geografia

A Profa. Dra. Selva Guimarães, coordenadora do GEPEGH, fala sobre suas experiências de sala de aula e os caminhos da Educação

Por Selva Guimarães

novembro de 2019

Paulo Freire nos ensinou “que não existe ensinar sem aprender” (Freire: 2001, p. 259). A escola, especialmente a sala de aula, sem dúvida, foi onde mais aprendi na vida. Para mim, é o lugar onde o ofício de mestre se realiza na sua plenitude. A escola e a sala de aula são espaços de troca, de partilha e socialização, de doação, de mobilização dos saberes e sentimentos. Ali, as ideias fluem num movimento dialógico em que se entrelaçam uma polifonia de opiniões, teorias, enunciados, pensamentos e pensadores, atitudes, valores, exemplos dos mais rotineiros aos mais sofisticados. Enfim, a beleza de ser professora, no sentido completo da palavra, concretiza-se nas salas de aula, onde professores e alunos se reinventam cotidianamente.

Hoje, em 2019, vivendo intensamente a era digital, um novo espaço formativo me desafia, me entusiasma. O palco é outro, combina tecnologias digitais, textos, imagens, sons numa velocidade jamais imaginada por mim, nos tempos do giz, apagador e mimeógrafos, e posteriormente, do moderno retroprojetor. Como diriam meus pais: …. vivendo e aprendendo. Foi assim que, em 2016, propus ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Ensino de Geografia e História da Universidade Federal de Uberlândia (GEPEGH/UFU) o projeto de pesquisa que previa a criação do “Observatório do Ensino de História e Geografia”. O Grupo de pesquisa, formado por professores e jovens pesquisadores, abraçou a ideia e colaborativamente, estudamos e criamos essa Plataforma digital que articula ensino, pesquisa, extensão e comunicação. Uma plataforma formativa, acessível aos professores, pesquisadores, estudantes e todos aqueles envolvidos com a educação, a cultura, a história e a geografia.

Antes de ser professora universitária, fui professora da educação básica. Ao longo da minha carreira, tive o privilégio de atuar como professora polivalente, alfabetizadora em salas de aulas do primeiro e terceiro anos, da primeira etapa do ensino fundamental; e como professora de História, EMC e OSPB nos anos finais do ensino fundamental e, nos três anos do ensino médio. Posteriormente, passei a atuar na graduação, na pós-graduação lato sensu, no Mestrado e no Doutorado em Educação. Em cada turma, ainda que o planejamento, o conteúdo, a metodologia fossem os mesmos, o realizado nas aulas era completamente distinto. Claro. O professor não está sozinho diante dos conteúdos a serem ensinados. Cada turma é formada por pessoas, que não são meros coadjuvantes, seres passivos, tabula rasa como alguns acreditavam. Ao contrário, os alunos são sujeitos da história, fazem história, possuem histórias de vida diferentes; têm gostos, desejos, vontades e necessidades diversas. A sala de aula é um espaço de relações entre sujeitos (professores e alunos), saberes e práticas. É um espaço sensível.

A professora Selva Guimarães. Foto: Arquivo pessoal

Na minha experiência nas escolas da rede pública de ensino nos anos 1970/1980, duas características da educação naquele período, heranças históricas do elitismo educacional e da desigualdade social, se reproduziam e me revoltavam: a repetência e a evasão escolar. A desvalorização da área de humanidades, o tecnicismo pedagógico, o controle ideológico do currículo, a falta de liberdade de expressão nas escolas; a desqualificação e proletarização dos professores são dimensões que compõem o quadro da minha experiência docente nos anos iniciais. Gostava de alfabetizar as crianças. Uma lembrança saborosa daquele tempo e que, até hoje, muito me comove, era acompanhar as crianças juntando as sílabas e palavras nas primeiras leituras e escritos.

Na minha atuação nas salas de aulas de História, nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, vivi condições de trabalho completamente desiguais. Era uma jornada massacrante. Nessas condições foi possível compreender o sentido de precarização. O professor não tem tempo para descansar, nem preparar as aulas durante a semana. Mal tinha tempo para fazer as refeições. Portanto, os finais de semana eram sempre comprometidos com os trabalhos escolares.

Meu desafio, na sala de aula, na educação básica e na universidade sempre foi não ser uma professora mera reprodutora de conhecimentos. Nesse sentido, criava estratégias diferentes para que os alunos pudessem questionar o conhecimento, as diversas versões históricas. Recordo-me que uma das experiências exitosas era estudar um determinado tema, utilizando-se de vários livros didáticos disponíveis na escola. Explico melhor: vivíamos o tempo do boom das editoras de livros didáticos. Como estratégia de marketing, as editoras produziam os livros chamados “Manuais do Professor” e enviavam pacotes e pacotes de livros didáticos para as escolas. Aproveitava esses livros para tratar um tema sob diferentes interpretações. Organizava atividades em que cada grupo investigava o mesmo assunto em um livro diferente e, no final, fazíamos “painéis integrados” onde todos apresentavam como os autores focalizavam o tema, o ponto de vista, as interpretações. Desse modo, tirava proveito dos escassos recursos disponíveis nas escolas para promover debates e discussões em salas de aula. Quando possível, convidava pessoas da comunidade para falar com os alunos e, não posso esquecer, promovia estudos fora da escola em fábricas, museus, praças, espaços públicos e instigantes viagens pedagógicas.

Ensinar história e metodologia do ensino de História foi sempre uma provocação, uma tentativa de reconciliação da história vivida com a história/conhecimento, a partir de uma relação ativa entre os tempos presente e passado, entre espaços próximos e distantes, num movimento dialético. Isso favoreceu a minha prática, o rompimento com os maniqueísmos tão comuns nas aulas de História (bom/mau, vencido/vencedor), com a fragmentação, com o mecanicismo, a linearidade, evitando cair nas armadilhas do anacronismo tão recorrentes. Os projetos provocaram a busca, o contato e o diálogo com fontes diversas, outra relação com o livro didático, democratizando a crítica à História, ampliando as possibilidades temáticas e a compreensão histórica.

Olhar para o passado com os olhos do e no presente, refletir sobre uma experiência pedagógica – não é um trabalho simples, porém é educativo. Ensinando Metodologia de Ensino de História e Geografia (sou graduada em Estudos Sociais) no Curso de Pedagogia da UFU, formava professoras para a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental, além de pedagogas para a gestão pedagógica e administrativa das escolas. O trabalho de preparação era feito em equipe com as professoras de Metodologia de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências. Isso foi fundamental para minhas aulas, para eu vencer a minha insegurança naquela fase inicial, de entrada. Recebi, de modo incondicional, apoio pedagógico e emocional das professoras mais experientes, educadoras reconhecidas na cidade, pessoas afetivas. Naquele período, realizamos o Projeto do LAPEd – Laboratório Pedagógico do Curso de Pedagogia da UFU e, desde então, a parte mais prática do Curso, as aulas de análise e elaboração de materiais didáticos, passou a ser realizada no Laboratório.

Em 1992, cinco anos após o meu ingresso, nossa equipe de Metodologia da Faculdade de Educação (FACED/UFU), sob minha coordenação, lançou o primeiro número do periódico “Ensino em Revista”, contendo experiências de sala aula, escritas por professores e alunos do Curso. No “Editorial” da Revista (1992), reafirmamos que se tratava da primeira publicação do que representava um esforço no sentido de criar possibilidades de ampliação do debate de propostas pedagógicas que, analisadas, revistas e enriquecidas, pudessem contribuir para operar as transformações educacionais que a sociedade brasileira tanto reivindica.

No Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED/UFU), fui demandada a ministrar aulas de disciplinas diferentes. Naqueles anos, procurei pensar a aula universitária, um espaço de exercício da interdisciplinaridade, um espaço da criatividade.  Nesse sentido, ministrar aulas na pós-graduação é formativo, exige de nós um esforço de novas leituras, nos proporciona desenvolver novos aprendizados, dinâmicas diferentes, tais como seminários em grupo, construção de narrativas e outros. No entanto, creio que os fundamentos de uma aula criativa são os mesmos para a educação básica, a graduação e a pós-graduação: sensibilidade, fluência e mobilidade, originalidade, atitude de transformação, espírito de análise, de síntese e, muito importante, capacidade de organização, coerência e compromisso com a educação.

Acredito na força transformadora das escolas e do ensino de Ciências Humanas (História e Geografia, Sociologia, Antropologia, Filosofia). Neste momento histórico, os professores brasileiros enfrentam muitas dificuldades, mas também há um campo de possibilidades com as tecnologias digitais, os aparelhos móveis de comunicação, as redes de ensino, pesquisa e as modalidades híbridas de formação permanente.

O Observatório, espaço de reinvenção, tem como meta principal a defesa do direito de aprender História e Geografia. A História e a Geografia são disciplinas essencialmente formativas, portanto estratégicas na formação de cidadãos críticos. O direito de ensinar e aprender as Humanidades é fundamental na construção de uma sociedade democrática.

Referência

FREIRE, P. Carta de Paulo Freire aos professores. Estudos Avançados. São Paulo, vol.15, n. 42, maio/agosto, 2001.