Violência e morte na escola
O que nós, professores, podemos oferecer para diminuir a dor no enfrentamento desse imenso desafio?
Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Jornal da USP.
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Um adolescente mata a professora e fere quatro pessoas.
A primeira pergunta é: de quem é a culpa? Da escola? Da família? Do governo?
A segunda: como resolver o problema?
E, a terceira: o que explica a vontade de matar?
Existe responsabilidade da escola, da família e da sociedade, gerando um sentimento difuso de culpa, de mal-estar no mundo em que vivemos.
Mas, antes de cobrar, é preciso conhecer as circunstâncias, avaliar as condições dos atores envolvidos, para responder ao desafio. Eles dispunham de condições, conhecimento, poder e dinheiro, para enfrentar o problema?
Olhando com mais detalhe a história observa-se, apesar dos poucos recursos disponíveis na rede escolar, as instituições envolvidas no acontecimento procuraram encontrar uma solução para as condutas violentas do estudante. A escola ofereceu, para o jovem de 13 anos e para a sua família, o apoio de especialistas.
O ritmo burocrático, lento, da transferência de informações, de uma escola da prefeitura para uma outra, do estado, acrescido de dificuldades na comunicação com a família do estudante, demonstram os limites de atuação das escolas em casos como este. O tema em questão diz respeito à saúde pública e exige, para a sua solução, a presença de especialistas, psiquiatras, psicólogos e pedagogos especializados, profissionais que a escola não dispõe em seus quadros.
Convém observar que o programa, com esta finalidade, não estava mais em funcionamento. Foi necessário a morte de uma professora para o tema ganhar visibilidade. A violência nas escolas é problema antigo, agravado com a pandemia de covid.
A família do jovem foi procurada, mas não respondeu às solicitações, demonstrando incapacidade de participar na busca por uma solução. Num país como o Brasil, devemos imaginar serem muitas as famílias sem condições de evitar os descaminhos de seus filhos, deixando para a escola a solução dos problemas. Não se trata de julgar, mas de compreender a raiz do problema e propor soluções.
Os professores no Brasil estão sozinhos. Eles também precisam de apoio. Não encontram parceria no Estado e enfrentam a indiferença da sociedade. Salários baixos e poucos recursos para as escolas contribuem para o agravamento da violência, problema potencializado pelas redes sociais. O único acolhimento existente, em muitas comunidades, é oferecido por instituições religiosas às famílias.
O Estado brasileiro viveu uma epidemia com consequências extremamente difíceis para as crianças e os jovens em idade escolar. Em termos de morte por covid, por milhão de habitantes, o Brasil ocupa o 17º lugar. A Itália, com uma grande população de idosos, está em 22º lugar e, a Argentina, país vizinho do Brasil, em 26º. Tiramos nota baixa em relação à covid. Convém não tirar nota baixa de novo, na saúde mental dos adolescentes.
Com os alunos e professores trancados em casa, sem condições para a sua sobrevivência física e mental, a violência nas escolas aumentou muito. Os estudos realizados sobre o tema, já há algum tempo, alertam as instituições responsáveis para o problema. Acontece que não existe escuta para os professores. A violência, a prática de automutilação e os suicídios de jovens tem aumentado e os estudos demonstrado a gravidade da situação.
Por que ninguém escuta a fala dos professores e a dor dos estudantes?
Embora retoricamente se valorize os professores, na verdade, na nossa sociedade, o que se escuta, alto e bom som, é a conta bancária. A fome é a prova dos nove. Demorou para se escutar o grito.
Observem:
O tema mais debatido na área da educação é o baixo rendimento escolar em exatas, comprovado nas avaliações, de matemática e física. De forma recorrente se menciona a falta de professores nestas disciplinas.
Sim, é verdade eles faltam, e, fazem falta.
Por quê?
Porque vão trabalhar onde podem ganhar mais. É evidente.
Com foco nos números, a escola tenta ensinar para os jovens a importância, no projeto de vida, da independência financeira, do planejamento, da definição realista dos objetivos escolhidos.
Na contrapartida, é bem menor a preocupação com o desempenho dos alunos nas áreas de filosofia e literatura. Os pais perguntam: Ele foi bem em matemática? Se a nota foi baixa em filosofia o consolo é: mas ele foi bem em matemática.
Embora eu concorde que é importante compreender o sistema financeiro, responsável pela dependência das pessoas, em razão das dívidas (e não a sua independência do sistema financeiro), observo também a alta do número de suicídios de jovens. É necessário estar vivo, ter comido alguma coisa e dispor de saúde mental para ter sentido aprender matemática ou qualquer outra coisa.
Níveis altos de angústia, de violência e mal-estar na civilização impedem qualquer aprendizado. Jogam o jovem no mundo da violência, do crime e das drogas, acentuam o uso da internet.
Como solucionar o problema com poucos recursos?
Dei muitas voltas, afinal sou historiadora. Lembrei da Revolução Constitucionalista de 1932, do ouro arrecado e, lembrei das joias. Sim, das joias, doadas gentilmente pela Arábia Saudita cuja soma alcança 18 milhões! Em época de ajuste fiscal, o Brasil poderia iniciar uma grande campanha em favor da saúde mental dos Jovens brasileiros. “Doe joias para o bem da juventude brasileira”. O mote inicial da campanha seria aquele utilizado em tempos de guerra: as joias da coroa, ofertadas em leilão, à serviço da nação brasileira. Como o Brasil é uma república democrática, não tem nem rei nem rainha, mas possui joias, embora não tenha como usá-las. Afinal, o Estado é uma instituição abstrata!
Fica aqui uma pequena sugestão, para não dizerem que levanto problemas para os quais não apresento solução, ou seja, dinheiro para pagar a conta. Poderia dar outras sugestões como por exemplo a taxação das grandes fortunas…. Prefiro as joias, para começar.
A frequência acentuada de problemas de violência entre os jovens exige a intervenção rápida por parte de psiquiatras, pedagogos e da polícia. Exige planejamento, investigação, e envolvimento afetivo, necessidades que pressupõem grande quantidade do vil metal. Exige a constituição de uma ampla política em âmbito nacional, estadual e municipal voltada para a saúde mental das crianças e adolescentes. Os brasileirinhos estão doentes, consumindo em quantidade pelo celular, o vírus da violência, grande parte deles produzidos nos Estados Unidos.
Telma Vinha, pesquisadora da violência, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), refere-se à inexistência de políticas públicas com consequências trágicas. Diz ela numa frase verdadeira e dura:
“Vai acontecer de novo, só não se sabe onde”.
Para apagar a fogueira da violência verbal e física, esparramada pelas escolas brasileiras, são necessárias medidas de curto e de longo prazo. A curto prazo a sugestão é cada escola incorporar no seu quadro de funcionários especialistas capazes de minimizar os conflitos internos (escola/família). Já os conflitos externos cabem ao Estado construir políticas mais amplas, em âmbito nacional, evitando a aquisição de armas e propondo atividades culturais e esportivas, em substituição aos clubes de tiro, em moda na atualidade.
Com relação aos estudantes, o combate à violência na escola envolve uma dimensão grupal. As dinâmicas de grupo entre alunos e professores, se acompanhadas por especialistas, permitem aos adolescentes trabalharem suas angústias, encontrar as raízes de comportamentos autodestrutivos (que atingem grande número de adolescentes), lidar com os erros, com a incapacidade de conviver com a diferença, e, especialmente, com a pulsão de morte, tema em eclosão entre os jovens.
Com relação a cada um dos estudantes, é necessário ter consciência do tamanho (imenso) do sofrimento. Ele envolve a ausência de sentido da própria vida e da vida do Outro. Dor manipulada pela rede, por comunidades que pregam a violência, a automutilação e o suicídio por meio de jogos e estímulos aos crimes, condutas machistas e defesa de práticas autoritárias e antidemocráticas. Só um caminho para diminuir o problema: o combate ao anonimato, a regulação e a responsabilização das redes.
A educação é projeto de longa duração. Ele só se encerra com a morte. Mas existem momentos formativos, especialmente na adolescência, quando o jovem aprende a arte de viver em sociedade. É difícil. Este exercício, de convívio com o Outro, depende da escola e, muito, da comunidade na qual o jovem está inserido. Depende das amizades, de um desenvolvimento cultural solidário entre amigos, da descoberta complexa, de uma razão humanizada.
Aprender a viver não é uma matéria fácil. É bem mais simples a matemática, somar ou a subtrair. Um pouco mais difícil é aprender a dividir e multiplicar, mas a tabuada ajuda. Mesmo os juros, com o auxílio do professor é possível treinar e aplicar o conhecimento nos problemas caseiros e nos pequenos negócios.
Agora, tente explicar a angústia humana, a autossabotagem, ou mesmo, um simples mal humor. Ensine conviver com o fracasso, com os erros, se colocar no lugar do Outro. Explique o que é amar, como calibrar as emoções, discriminar os limites, tênues, entre bem e o mal, lidar com emoções fortes, com a vontade de destruição do Outro e do mundo. Elucide como ter consciência física e psíquica do que é lícito e do que é ilícito, as razões do crime e do castigo, do resgate, incansável, do sentimento de humanidade, em dias de cansaço com os seres humanos.
Quais são os instrumentos ofertados pela sociedade, pelas instituições públicas, para que se aprender a lidar com as emoções, com a violência, com o ódio?
O zoom?
Como separar a realidade, da fantasia, a razão humanizada, da tecnologia?
Como criar a harmonia em um sujeito crítico aos ideais da civilização na qual ele vive e discorda?
Onde se aprende lidar com a nossa condição humana, com as ambiguidades cotidianas mediadas pela tecnologia e pela Inteligência Artificial?
Quais são os instrumentos que a escola e a sociedade contemporânea podem oferecer para o jovem superar suas dificuldades?
Existe solução?
O primeiro passo para responder este imenso desafio contemporâneo é reconhecer que, dele, só temos indícios. Observando detalhes é possível constatar a importância do campo das linguagens e dos diferentes letramentos no uso das novas tecnologias. Explico. Cada adolescente ao pegar um celular se defronta com palavras, imagens e sons, com determinados tipos de letramento. A sua maneira de ser no mundo tem como modelo a tela do celular.
A educação em diversos países europeus, como França, Alemanha, Espanha, Portugal, Dinamarca, Finlândia, entre outros, valoriza a leitura e a vida cultural. A literatura é o instrumento básico para o jovem iniciar uma conversa consigo mesmo. Ela permite reconhecer a dor, o mal-estar no mundo, a angústia fruto da ausência de sentido na vida e a pulsão de morte, própria do ser humano.
Machado de Assis, ao expor a mesquinhez de Brás Cubas, demonstra a existência, em todos nós, de condutas tacanhas. Ao detalhar a insegurança de Bentinho (em relação a Capitu) repete o trajeto reflexivo, para um drama afetivo, os ciúmes. Primo Levi, ao se defrontar com a miséria humana, no seu limite, da animalização e eliminação do Outro, incita o jovem a descobrir como é difícil e delicada a vida, produzida como um empreendimento ético. Não é fácil gerir a si mesmo. Temas que merecem investimento nas escolas e, especialmente, nas Universidades.
Frequentemente, nos píncaros do saber, prevalece o esquecimento de humanizar o conhecimento.
O que nós, professores, podemos oferecer para diminuir a dor no enfrentamento desse imenso desafio?
Refletir junto com os jovens a angústia própria da nossa frágil existência, o sentido efêmero das coisas, redimensionar com os alunos os seus sonhos, seus projetos de vida, fazer ver as pequenas delicadezas da vida, compor músicas, dramatizar histórias, ler junto, conversar. Levar a frente um esforço para conter o instinto de morte e a violência própria do sujeito contra si mesmo e contra os Outros.
Pode ser utopia?
Talvez.
Guimaraes Rosa oferece gotas de um remédio precioso:
“Felicidade se acha nas horinhas de descuido”.
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