Professora Gisele Girardi

Gisele Girardi é uma importante referência para a Geografia e cartografia escolar.

Por Tiago Nogueira Galinari - Revista Giramundo

maio de 2022

 

GIRAMUNDO: Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória na ciência geográfica e sua experiência no magistério. De onde partiu o seu interesse pela geografia, pela cartografia e pelo ensino de Geografia?

PROF.ª GIRARDI: Ingressei no curso de Geografia em 1987, na Universidade de São Paulo (USP), aos 16 anos. Minha opção pela Geografia deveu-se, em muito, ao sonho de menina de ser arqueóloga. Hoje entendo que o que Arqueologia representava para mim naqueles tempos era ser cientista, descobrir coisas e viajar, uma possibilidade libertadora para uma menina da periferia de São Paulo, descendente de operários imigrantes. Mas não havia, então, curso de graduação em Arqueologia no Brasil e conversando com professores e com um arqueólogo, em uma mostra de profissões, foi-me recomendado fazer História ou Geografia, que dariam os fundamentos mais sólidos para posteriormente, em nível de pós-graduação, cursar Arqueologia. Assim, a opção pela Geografia não foi pensando em atuar na área, mas em me qualificar para o que eu então desejava. A formação em Geografia, para minha surpresa e felicidade, realizava muitas coisas que compunham meus anseios, os dos sonhos de menina. O interesse pela Cartografia teve um caminho curioso. Eu tinha muita facilidade e gosto pela matemática e vinha de uma convivência habitual com materiais de desenho, como canetas a nanquim, compassos, esquadros e instrumentos até bem mais sofisticados, em virtude do contato com o ofício do meu pai, que trabalhava com direção de arte em agência publicitária num período em que os computadores ainda não existiam e, portanto, toda a produção era manual. A Cartografia era, assim, no curso de Geografia, minha zona de conforto. Não era raro que meus colegas pedissem auxílio para entender escala, rumo, conversão de coordenada, calcular área etc. Reuníamos aos sábados nas mesas do Centro Cultural São Paulo e eu, nova de tudo, achava-me o máximo por ensinar Cartografia. Esta foi, de fato, a primeira experiência que me fez sentir professora, e eu gostei. Durante a graduação, além de me dedicar às disciplinas obrigatórias de Cartografia, cursei todas as disciplinas optativas ofertadas na área e até refiz algumas, como monitora voluntária. Participei de grupos de estudo e de estágios em cartografia, até que abriu concurso público para técnico de nível médio no Laboratório de Cartografia da USP (Universidade de São Paulo), no qual fui aprovada e atuei por volta de cinco anos. Duas coisas me incomodavam a respeito da Cartografia naquele contexto. A primeira era que o fato de ser um campo de conhecimento inexistente como tema de discussão nos eventos da Geografia, como, por exemplo, nos encontros e congressos da AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros), entidade em que militei por muitos anos. Era uma sensação de que a Cartografia não cabia na renovação crítica da Geografia. Outro foco de incômodo era o fato de que as disciplinas de Cartografia eram muito centradas nas técnicas e pouco em abordagens teóricas, e não raro parecia incompatível ter uma atuação política no movimento estudantil e na AGB e me dedicar à Cartografia. Houve um acontecimento muito marcante em relação a este segundo campo de incômodos, que foi um concurso grande ocorrido no Departamento de Geografia da USP para efetivação de docentes, no início dos anos 1990, cujo tema da prova versava sobre teoria e metodologia. Após o concurso pedimos à Professora Maria Elena Simielli que nos falasse, num colóquio do Grupo de Estudos em Cartografia Temática (GEOCART), sobre como desenvolveu seu tema no concurso, no qual, aliás, ela havia sido muito bem avaliada e obtido uma excelente colocação. Guardo comigo até hoje os apontamentos deste colóquio. A professora nos apresentou os fundamentos teóricos que embasavam a comunicação cartográfica, bastante amparada em literaturas internacionais, enfatizando a importância da valorização do usuário do mapa. A partir desta apresentação passamos a discutir textos teóricos no GEOCART. Como a maior parte dos textos era em língua estrangeira, passamos a editar um pequeno borrador denominado “Geocartografia: textos selecionados de cartografia temática”, com as traduções. Lançamos cerca de 15 destes caderninhos entre 1994 e 1997. Várias pesquisas em nível de mestrado e trabalhos de conclusão de curso foram desenvolvidas com este foco neste período, sob orientação da Profa. Maria Elena Simielli. Minhas produções acadêmicas iniciais se enquadraram aí, na esteira desta abertura de possibilidades para abordar teoricamente a Cartografia na Geografia. Minha experiência na escola básica foi bastante restrita, abrangendo uma substituição por um semestre em um supletivo e os estágios da Licenciatura. Tanto durante a graduação como em parte do mestrado minha atuação mais intensa foi em áreas técnicas: no Laboratório de Cartografia da USP, como já mencionado, e posteriormente na Divisão de Cartografia do Instituto Geográfico e Cartográfico de São Paulo. Quando estava no mestrado recebi um convite de uma amiga, Jussara Vaz Rosa, para compor uma equipe de análise crítica de um atlas de uma editora de material didático. Esta atividade posteriormente se transformou em um convite para autorar um Atlas e, desde 1998, Jussara e eu lançamos 5 versões diferentes do Atlas Geográfico da FTD (os nomes variaram a cada versão). O contato com a editora rendeu convite para escrever um livro regional de Geografia (Geografia do Espírito Santo), para 5o. ano do Ensino Fundamental. Assim, no campo da educação básica, meu envolvimento foi mais intenso na formação de professores, ministrando cursos de curta duração como parte de minha atuação no Laboratório de Cartografia e, posteriormente, no ensino superior, onde atuo desde 1994, bem como na autoria de materiais didáticos e ministração oficinas, palestras e outras atividades para docentes. Em cursos superiores de Geografia atuei 4 anos na rede privada e estou a pouco mais de 20 anos na rede pública, tendo feito parte do corpo docente das Licenciaturas Plenas Parceladas da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso) e, atualmente, da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), onde ministro disciplinas de Cartografia e de Metodologia na Graduação e na Pós-Graduação, bem como lidero o grupo de pesquisa POESI (Política Espacial das Imagens e Cartografias), cadastrado no CNPq. Após meu doutoramento, em 2003, tomei parte em dois campos bastante distintos, o que me permitiu ter outros olhares e abordagens sobre a Cartografia. Um destes campos foi o LABGEST (Laboratório de Gestão de Recursos Hídricos e Desenvolvimento Regional), da UFES, coordenado pelo Prof. Edmilson Teixeira, no qual atuei assiduamente por cerca de 10 anos. O escopo das pesquisas do LABGEST, naquele momento, era o fomento de metodologias para a gestão das águas com ênfase em processos participativos, o que me permitiu aproximações com a problemática da participação para pensar mapeamentos participativos e colaborativos. Outro campo em que me envolvi foi com a temática das imagens na educação em Geografia, colaborando na organização de um projeto de pesquisa e de um evento que deram início, em 2010, à Rede Internacional de Pesquisas “Imagens, Geografias e Educação”, da qual atualmente sou a coordenadora. Meu Pós-Doutorado, realizado na Faculdade de Educação da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), sob supervisão do Prof. Wenceslao Machado de Oliveira Júnior, em 2014, faz parte da articulação desta rede e minha vivência nela tem me permitido aprofundamentos em estudos teóricos, metodológicos e epistemológicos sobre linguagens imagéticas, onde se enquadram os mapas, na interface com a educação e a Geografia, com abordagens baseadas em autores pós-estruturalistas e do campo da cultura.

GIRAMUNDO: A senhora tem realizado muitas pesquisas sobre a cartografia escolar e, com isso, acumulado muitas reflexões sobre o assunto. Em sua opinião, qual a importância da cartografia e, em especial, das novas formas de fazer e pensar a cartografia no processo formativo de jovens nos ensinos fundamental e médio? Há espaço para cartografias alternativas na escola básica?

PROF.ª GIRARDI: Considero importante, inicialmente, fazer uma distinção entre Cartografia, mapeamento e mapa. É muito comum o uso destas palavras como sinônimas umas das outras. Esta indistinção, no entanto, pode mascarar algumas forças atuantes na seara da produção de imagens de mundo. Penso ser produtivo entender estes termos como, respectivamente, ciência, processo e produto, distinção que encontra amparo na literatura em Cartografia crítica contemporânea, em autores como Denis Wood, Jeremy Crampton, John Pickles, Chris Perkins, John Krygier, dentre outros. Tenho preferido cada vez mais trabalhar com o termo mapeamento, seja para livrar a prática social de imposições da normatividade técnica, muitas vezes traduzidas em regras e prescrições, seja para forçar a expansão da ciência cartográfica ao dialogar com as criações sociais de mapas. Utilizar a palavra mapeamento, indicando uma prática social, em vez de cartografia é também útil para trabalhar com outras abordagens teóricas e metodológicas que tomam a cartografia como força para inovações em seus próprios campos, como na filosofia da diferença (Gilles Deleuze e Felix Guattari), na literatura comparada (Roland Paulston) e na sociologia do direito (Boaventura de Souza Santos), somente para citar alguns, forçando-nos a pensar em nossas próprias práticas científicas. De todo modo, ao pensarmos no termo Cartografia Escolar é preciso que tenhamos claro se estamos a atuar como produtores de normas sobre o que ensinar na escola a serviço da Geografia ou se estamos abertos a entender como, por meio da escola, podem aflorar práticas sociais com uso de mapeamentos que permitam outras geografias. Insisto nesta distinção entre mapeamento, cartografia e mapa pois é ela que ilumina o entendimento sobre o que há de novo ou, repetindo os termos da pergunta que me fazem, o que seriam estas “novas formas de fazer e pensar”, que a depender do termo que preenche a lacuna, caminha para respostas distintas. São questões muito pertinentes, daí a importância de limpar um pouco o terreno das confusões. É sempre importante lembrar que a valorização do mapeamento (prática social) e/ou da cartografia (ciência) variam de acordo com o papel do mapa na sociedade. Quando a demanda principal era a precisão no levantamento dos territórios nacionais como meio de garantir a soberania, ou de levantamento de recursos naturais para atender determinado setor produtivo, um imenso conjunto de técnicas, instrumentos e metodologias foi desenvolvido para responder a esta demanda. Para citar um exemplo, a história do desenvolvimento das metodologias de triangulação topográfica é extraordinária, se considerarmos o conjunto de conhecimentos de astronomia, trigonometria, ótica, envolvidos. No entanto, por forças de corporações, estes conhecimentos vão se conformando como atuações restritas a certas profissões, transformando o conhecimento em normas e afastando este fazer da sociedade em geral. É isto que, em grande medida, sustenta a cartografia como ciência. Tanto Bruno Latour (2000), ao explicar a ciência em ação, como Milton Santos (1997), ao explanar sobre a solidariedade das técnicas, nos ajudam a situar bem esta questão de como a ciência vira norma, que vira um padrão social de verdade e um dispositivo corporativo. O desenvolvimento da ciência cartográfica, até meados dos anos 1980, baseia-se na promoção destas normas. O que acontece a partir daí? Duas coisas impactantes. Uma delas é a introdução massiva da informática na vida social, o que faz com que hoje tenhamos todo o desenvolvimento técnico, que mencionei há pouco, condensado em nosso aparelho celular. E se temos em nossos celulares dispositivos de localização, de navegação e outros, podemos produzir mapas com as normas técnicas da cartografia sem precisar que alguém medeie esta produção. Isto levou, simultaneamente, ao enfraquecimento da corporação dos cartógrafos e ao fortalecimento do mapeamento na vida social. Outro fator impactante na ciência cartográfica de meados dos anos 1980 foi a revisão da história da Cartografia e o entendimento do desenvolvimento dos mapas nos contextos sociais que os geraram e não em relação a uma história geral das técnicas cartográficas. Estes dois caminhos, tecnológico e epistemológico, colocaram a ciência cartográfica em um movimento distinto do que tinha antes, que era o da exclusividade da comunicação cartográfica como paradigma. Trocando em miúdos, o interesse passou a ser menos se um mapa atende ou não às regras da cartografia e mais se produz ou não sentido em um campo social; interessa menos a composição da aparência do mapa, e mais como a manipulação de dados permite a produção de conhecimentos sobre a espacialidade do fenômeno. A meu ver, estas “novas formas de fazer e pensar a cartografia” são novos modos de entender e de situar a prática social de fazer mapa no rol de dispositivos de poder. Quem está perdendo o poder de controlar a produção dos mapas agarra-se cada vez mais em argumentos de desqualificação da produção do outro. Este é um aspecto fundamental a ser abordado no processo formativo de jovens nos ensinos fundamental e médio: mapear é um direito. E só é possível ser entendido deste modo se os conteúdos de Cartografia, em vez de serem apresentados como conjunto de normas rígidas, sejam trabalhados como linguagem, ou seja, como possibilidade de expressão de um território, de uma geografia. É isso que às vezes rotulamos como “cartografias alternativas”, um modo de marcar a posição de que estamos escapando de uma prescritividade. E o curioso é que a produção científica em Cartografia admite inúmeras possibilidades de abordagens, basta consultar os escopos das comissões e grupos de trabalhos da ACI (Associação Cartográfica Internacional). A sensação é que a Cartografia escolar no Brasil tem sido mais prescritiva do que a própria ciência cartográfica contemporânea. Assim, estrategicamente, precisamos de muita cartografia alternativa na escola básica, alternativa à prescrição. Há cerca de 10 anos tenho trabalhado com projetos de Iniciação Científica Júnior em escolas do Espírito Santo e as últimas experiências foram precisamente com mapeamentos feitos por estudantes de Ensino Médio, utilizando aplicativos de celulares gratuitos ou de código aberto. Há uma mudança sensível no modo como tais estudantes se situam e se compreendem no mundo, que se desdobram em engajamentos e em ressignificações da Geografia que está nos currículos escolares. Há mudança na ciência cartográfica? Sim, mudanças tecnológicas e epistemológicas. Há mudança na forma e estrutura do mapa? Não muito. Mas há uma profunda mudança na prática social do mapeamento. Penso ser esta uma contribuição importante da Cartografia escolar na escola básica.

GIRAMUNDO: A cartografia social vem ganhando cada vez mais destaque e, hoje, ela vem sendo discutida até mesmo em âmbito escolar. A senhora vê o mapeamento participativo como uma importante alternativa pedagógica? Quais as suas vantagens no contexto escolar?

PROF.ª GIRARDI: É necessário que, novamente, iniciemos por precisar um pouco melhor os termos. O que se quer dizer quando se fala em cartografia social? E mapeamento participativo? E mapeamento colaborativo? E mapeamento coletivo? Os textos que apresentam experiências de mapeamento com populações tradicionais, excluídas e subalternizadas trazem uma impressionante riqueza de procedimentos. E na mesma medida é desnorteadora a miríade de significados que se atribuem aos termos em questão. No fundo, o que estão a clamar é: temos direito de mapear. E eu concordo com isso. Mas, ao mesmo tempo, penso ser importante que ao menos os que se dedicam a estudar Cartografia se debrucem sobre o significado destes termos como elemento de sua valorização. Em linhas gerais, os adjetivos “participativo” e “colaborativo” identificam a metodologia. Já os adjetivos “social” e “coletivo” caracterizam o agente ou sujeito mapeador, não implicando em qualquer metodologia específica de mapeamento. É preciso, ainda, lembrar que estes são os adjetivos mais comuns considerando o campo acadêmico e dos movimentos sociais. No campo da arte e arte-ativismo em que mapas são tomados como matéria-prima, há muitos outros termos utilizados, adjetivando ora mapas, ora mapeamentos e ora cartografias, tais como táticos, críticos, radicais, populares, livres e abertos. O caráter metodológico que distingue o mapeamento colaborativo do participativo tem relação com quem faz e de quem é o resultado do mapa. Os mapeamentos participativos têm por princípio serem decididos, definidos e executados por uma comunidade ou grupo social, sendo deles os resultados. O agente externo é somente um apoiador ou um facilitador do processo. Não se incluem aqui, evidentemente, as chamadas “participações cosméticas”, ou seja, que têm o nome, mas não realizam os princípios. Infelizmente, dadas as fragilidades da democracia brasileira, a participação em fóruns de gestão social compartilhada, como as audiências públicas muitas vezes é cosmética. Nos mapeamentos colaborativos há uma formatação prévia do mapeamento por quem demanda e gerencia a informação, seja uma pessoa, um coletivo, uma instituição. Isto inclui decisão prévia sobre o mapa base, as legendas ou procedimentos de inserção das informações. Há um convite às pessoas, seja público geral, sejam públicos específicos, para que insiram informações, processo este denominado de IGV (informação geográfica voluntária), que tem sido estudado como mecanismo válido de coleta de informações para instruir tomadas de decisão. As possibilidades de map mashups, ou seja, de criação de protocolos de inserção de informações sobre uma plataforma de mapas online (tais como GoogleMaps ou OpenStreetMap) ampliou enormemente a prática de mapeamentos colaborativos online na atualidade, forçando, por isso, o aprofundamento dos estudos sobre IGV. Um dos exemplos mais interessantes de mapeamento colaborativo já produzido no Brasil é o “Mapas Culturais”, criado em 2015 e gerenciado pelo extinto Ministério da Cultura, tendo sido construído na plataforma OpenStreetMap para dar visibilidade aos mestres e mestras da cultura popular, aos pontos de cultura e às infraestruturas e programações culturais em todo o território nacional, cuja alimentação poderia ser feita por qualquer pessoa que se credenciasse para fornecer tais informações. O termo “cartografia social” é pouco usual na literatura internacional relativa à ciência cartográfica, mas é comum em textos sobre experiências de mapeamento por populações minoritárias. No Brasil, este rótulo se deve às ações do PNCSA (Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia), que é uma das experiências mais fascinantes que temos no país de utilização de recursos de mapeamento para reivindicações territoriais e defesa de modos de vida de diferentes povos (indígenas, quilombolas, faxinalenses, ribeirinhos etc.). Em grandes linhas, a atuação do projeto inclui a produção de um mapa situacional negociado entre membros da comunidade com apoio da equipe do PNCSA, que se assemelha aos mapas mentais que usualmente são trabalhados na Geografia, só que feitos coletivamente. Uma etapa importante é a criação das legendas, ou seja, dotar as marcas gráficas com simbolismo adequado ao que a comunidade quer apresentar no mapa. Estes mapas posteriormente são reelaborados com a utilização dos elementos mais formais da cartografia, pois disputam narrativas territoriais com os mapas oficiais, daí a estratégia de grafá-los na “mesma língua”. Mapeamento coletivo é, assim como cartografia social, mais um rótulo que identifica uma prática social do que uma metodologia específica. É o termo utilizado, por exemplo, pelo duo Iconoclasistas, da Argentina, que promovem oficinas de mapeamento em que a tônica é a produção da visibilidade de uma problemática territorial de uma comunidade, para o que criam e disponibilizam ícones para serem colados em bases cartográficas. O PNCSA se enquadraria como um tipo de mapeamento participativo e os mapeamentos dos Iconoclasistas são em partes participativos e em partes colaborativos. Como estes mapeamentos poderiam estar na escola? De vários modos. Desde a discussão sobre o fato de que todas as formas de mapear são legítimas, o que pode ajudar na alteridade em relação aos mapas, comparando, por exemplo, um mapa situacional com um mapa final do PNCSA e problematizando por que foi necessário traduzir o mapa da comunidade na linguagem do mapa oficial. Outra possibilidade seria a prática de mapeamentos que envolveriam a informação geográfica voluntária dos estudantes, abordando tanto as tecnologias de produção de plataformas colaborativas como o sentido ético de fornecimento de informações. O que caracteriza estas modalidades de mapeamento é o conhecimento direto do mapeador com o território, atual ou passado, e, portanto, estes mapeamentos funcionam bem em áreas em que os estudantes convivem, seus territórios, como a comunidade, o bairro etc. Também poderia ser feito no interior da própria escola, identificando áreas consideradas problemáticas e que podem ser elemento de reivindicação de melhorias, funcionando como mobilizador da comunidade escolar. O mais importante é não converter estas possibilidades de mapeamento em conteúdos estanques e definições rígidas a serem cobradas em provas, mas abrir possibilidades de produção de imagens do mundo visando a uma atuação social mais ampla.

GIRAMUNDO: Atualmente, muito se fala sobre o papel das geotecnologias no ensino de Geografia. Qual a sua opinião sobre esse tema? Como o uso de tais tecnologias poderia contribuir com a Geografia ensinada nas escolas?

PROF.ª GIRARDI: Não há como ignorar as geotecnologias na escola e muito menos na educação em Geografia na atualidade. Mas o que tenho visto é um uso muito restrito das geotecnologias no ensino de Geografia, tomando por base as experiências relatadas em artigos e em anais de congressos sobre a temática. Sem desprezar, evidentemente, tais experiências, a grande maioria se resume a movimentos de zoom no GoogleEarth. Claro que há várias aprendizagens possíveis neste tipo de experiência, como perceber o jogo de escalas cartográficas, as mudanças das coordenadas geográficas, a visão de cima e outros elementos que mais ajudam a entender os elementos do mapa do que problematizar a própria geotecnologia. Há uma quantidade muito grande de aplicativos gratuitos e de código livre que podem ser utilizados, seja nos laboratórios de informática, quando houver esta infraestrutura na escola, ou nos próprios celulares dos estudantes. Para mencionar alguns: plataforma OpenStreetMap, semelhante ao GoogleMaps, só que de código aberto em que os usuários podem, mediante cadastro e mediação, inserir informações no mapa base; criação de map mashups, quando se utiliza uma das plataformas de mapeamentos para criar um protocolo de informações geográficas voluntárias, mas não ficam na base cartográfica; cartogramas de uma ou mais variáveis estatísticas utilizando as plataformas de mapeamento de sites oficiais, tal como a do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística); visualização e leitura de dados de satélite utilizando o TerraView, do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais); transferência de anotações de campo para ambiente virtual por meio de QRCodes, utilizando o aplicativo FieldPapers. Há muitas outras sugestões de aplicativos para mapeamentos em atividades pedagógicas no site “Recursos Educacionais com licenças Abertas”. As principais questões que os professores e professoras nos apresentam quando discutimos esta temática é a falta de tempo na grade curricular para desenvolver mapeamentos (qualquer mapeamento), a falta de infraestruturas apropriadas de informática nas escolas, a proibição de uso de celulares na escola e o fato dos docentes não terem tido formação específica em suas licenciaturas para isto. Soma-se a isso o fato de seus alunos serem nativos digitais, com muito mais facilidade de manipulação destes dispositivos e aplicativos do que os docentes, tendendo a desafiar sua autoridade. São, realmente, fatos a se considerar e são questões que envolvem muitas instâncias. De nossa parte, temos buscado contribuir com metodologias que viabilizem o uso de geotecnologias na escola, compreendendo os significados sociais mais amplos destas práticas, pois ensinar a linguagem do mapa somente para saber ler os mapas dos livros e atlas de Geografia não nos parece ser suficiente. Recorro, novamente, ao exemplo do Programa de Iniciação Científica Júnior que tenho desenvolvido com a Profa. Patrícia Leal em uma escola pública do Espírito Santo, com financiamento da FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo). Este projeto, denominado “Mapeamento Digital Colaborativo da Grande Jacaraípe (Serra/ES): Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação acessíveis para compreensão de dinâmicas socioambientais” tem por objetivos estudar e mapear colaborativamente, através do uso de softwares livres, informações do contexto socioambiental da parte baixa da bacia hidrográfica do Rio Jacaraípe, localizada no município da Serra/ES, discutir o uso das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) por grupos sociais no entendimento do que são problemas socioambientais, conhecer formas distintas de apresentação cartográfica e aplicar técnicas de produção colaborativa utilizando-se a plataforma OpenStreetMap. A metodologia é baseada no acompanhamento dos processos de mapeamento, para a qual são utilizados vários dispositivos. A partir da discussão de alguma temática socioambiental decidida pela equipe de bolsistas (7 de ensino médio e 1 da graduação, que atua como monitora), são feitos trabalhos de campo e produzidos os mapeamentos. Segue uma pequena descrição dos dispositivos mais utilizados. O GPS Essentials é um aplicativo de celular que apresenta várias informações, com bastante precisão, tais como altitude, velocidade, declividade, data, distância, latitude, longitude, tempo, hora de nascer e pôr do sol e direções, por meio de uma bússola. Permite criar rotas, tirar fotografias dos pontos e outras funcionalidades. É um aplicativo gratuito que não depende do sinal da internet para seu funcionamento. O FieldPapers é um aplicativo que permite que seja escolhida a plataforma de mapeamento, selecionada a área e criado um mapa base para o campo. Este mapa é impresso e vem com um QRCode. Em campo as anotações são feitas sobre este mapa, a mão livre. No pós-campo, por meio da leitura do QRCode, as anotações são georreferenciadas e transferidas para o computador, para sua edição. O OpenStreetMap é a plataforma de mapeamento aberto que tem interface com os dois programas anteriores, que tanto pode ser utilizada para mashups como para edição da própria base cartográfica, visto que é de código aberto. Neste último caso, os mapeadores se inscrevem na plataforma (criam contas) e tem suas inserções acompanhadas por um mediador da própria plataforma. Estas ferramentas dão aos estudantes a possibilidade de produzir mapas sobre sua realidade local e, muitas vezes, inserir suas práticas espaciais na plataforma, que passa a ser de conhecimento da sociedade. Por exemplo, há pontos inseridos pelos bolsistas de IC Jr sobre o bairro da escola que hoje estão na plataforma e aparecem no aplicativo do transporte coletivo que também utiliza a plataforma OpenStreetMap, às vezes acompanhados de imagens, áudios e outras produções dos estudantes “linkadas” na plataforma. Estas atividades são possíveis para um grupo de estudantes que tem bolsa e tempo para se dedicarem no contraturno, o que é diferente da situação em sala de aula. Sem dúvida. Mas podem ser trabalhadas como projetos da própria disciplina ou interdisciplinares, ou mesmo na exploração dos conteúdos formais da Cartografia. Talvez seja também importante inverter os termos da pergunta: em vez de somente procurar no uso das geotecnologias facilitações para ensinar Geografia na escola, pensar na contribuição que a Geografia ensinada na escola pode dar para o uso das geotecnologias no cotidiano.

GIRAMUNDO: A senhora tem debatido a cartografia no contexto escolar a partir de diferentes perspectivas. Em um de seus artigos (GIRARDI, 2018), em que discute as rupturas e reencontros entre cartografia e arte, a senhora afirma que há um enrijecimento nas formas de se produzir Geografia com mapas. Como esse enrijecimento se manifesta nas aulas de Geografia? Quais seriam os possíveis caminhos para fugirmos dessa situação?

PROF.ª GIRARDI: O enrijecimento começa com a frase O mapa é. Quando se diz isso, assume-se que só há um tipo de mapa (“o” mapa) e que só há um modo de ser aceitável (“é”). Independentemente do que viria depois, já identificamos como problemático que de início se assuma o que poderíamos chamar de perspectiva ôntica, ou seja, a característica de um ente é transferida para toda a categoria do ser. O complemento usual da frase O mapa é tende a reforçar o enrijecimento: uma representação plana de todo ou de parte da superfície terrestre em escala. Vamos trabalhar melhor estas ideias para compreender a rigidez que ela traz e o que estamos chamando de perspectiva ôntica. A ideia de representação implica que o mapa está sempre após o mundo, ou seja, as coisas teriam que estar antes no mundo para somente depois aparecerem no mapa. Isto cabe para vários tipos de mapa. Mas o que fazer com uma África que existiu antes no mapa do que no mundo? A ideia de representação serve para alguns mapas, mas não para todos. Do mesmo modo, a característica “plana” serve para produtos em papel, mas não serve para mapas feitos com varetas e conchas, ou para mapas entalhados em madeira. Superfície terrestre é, de fato, o objeto da grande maioria dos mapas. Mas não de todos. Um mapa geológico pode ser chamado de um mapa de superfície terrestre? E um mapa astronômico? Sem dúvida, todo mapa tem escala, já que se trata de uma redução. Mas pode ter mais do que uma, seja por efeito de sua construção (como nas anamorfoses), seja por efeito da própria projeção. Assim, escala, no singular, como nos casos anteriores, serve para um, mas não para todos os mapas. Ou seja, quando eu defino mapa tomando um possível como modelo (um ente), contribuo para a exclusão de outros desta categoria, ou os coloco como exceções, de todo modo mantendo o status do primeiro como modelo. Se avançarmos no entendimento de como um tal mapa virou modelo, inexoravelmente chegamos à história da Cartografia do Ocidente, ou melhor, a uma história dos mapas cujo aperfeiçoamento atendeu, prioritariamente, ao Estado e ao capital. É a existência do modelo que promove a produção das prescrições, isto é, a definição do que todo mapa tem que ter para ser considerado mapa. É nesta seara que residem muitos dos nossos problemas na Cartografia escolar. Tomemos como exemplo o último PNLD (Edital do Programa Nacional do Livro Didático), que determina que os mapas devem: “Apresentar legendas, escala, coordenadas e orientação em conformidade com as convenções cartográficas […]” (Item “t” do tópico 2.1.7.2). É preciso constatar que para o PNLD só existe um tipo possível de mapa, que é aquele modelo que apontamos anteriormente. Não há flexibilização e há casos de autores que são punidos se seguirem o entendimento da ciência cartográfica e não o do PNLD. Este, aliás, terceiriza as prescrições, anunciando que o real determinador delas são as convenções cartográficas. O PNLD dá a entender que existe um manual ou uma carta magna ou uma bíblia nominada “convenções cartográficas”, obra na qual todos os mandamentos e leis do mapa (de qualquer mapa!) estariam descritos e deveriam ser cumpridos. Lamento informar, mas esta obra não existe. Existem, sim, convenções cartográficas que, como o nome mesmo diz, são um conjunto de normas técnicas que foram convencionadas por um grupo de entes (instituições, países, membros de comunidade científica) para serem repetidas em todas as obras sob aquele escopo específico. Um exemplo é a convenção da CIM (Carta Internacional do Mundo ao Milionésimo), que se refere a um conjunto de normas adotadas na Conferência Técnica das Nações Unidas, em 1962. Há também convenções para as cartas topográficas nas escalas de 1:25.000, 1:50.000, 1:100.000 e 1:250.000, descritas no Manual Técnico T34-700 – “Convenções cartográficas: normas para o emprego dos símbolos”. Já as cartas náuticas seguem especificações técnicas da Organização Hidrográfica Internacional. As convenções são estabelecidas quando se pretende uniformidade no tipo de fundo de mapa, nos procedimentos adotados nos levantamentos, ajustes, recortes, escala etc. para um conjunto de mapas. E só servem para aquele conjunto. Cabe perguntar: ao que, então, o PNLD se refere ao invocar que, conforme as convenções cartográficas, o mapa deve ter legenda, escala, coordenada e orientação? Arriscamo-nos a dizer que prescrever o que um mapa tem que ter é mais um sintoma da falta de conhecimento do que é a Cartografia por parte de quem formulou o Edital do PNLD, ainda que queira parecer ser o contrário. Porque o mapa, sendo um objeto dotado de funcionalidade, convoca conhecimentos úteis para aquela funcionalidade. Portanto é absolutamente flexível em relação aos seus elementos. Vejamos alguns exemplos, começando pela orientação ou a indicação do norte do mapa. Os manuais mais clássicos de Cartografia estabelecem que a indicação do norte geográfico (direção do polo norte geográfico, aquele para o qual todos os meridianos convergem) é necessária somente quando o norte do mapa não coincidir com a parte superior da folha do mapa. Ou seja, para a imensa maioria dos mapas com os quais os estudantes têm contato em sua vida escolar a indicação do norte geográfico não seria necessária. O norte magnético é imprescindível quando a utilização do mapa requerer o uso de bússola. Como o norte magnético varia no tempo, sempre é preciso dizer a data a que aquele Norte se refere e informar o quanto declina magneticamente por ano. Para este caso, a rosa dos ventos ou a rosa dos rumos é interessante pois auxilia mensurações no mapa. Tais elementos são inseridos no mapa e há vários cuidados com a projeção que devem ser tomados para que funcionem. Não é por acaso, nem por qualquer ideologia, que os mapas de navegação usam a projeção de Mercator: ela funciona com a rosa dos rumos. Os mapas escolares de livros didáticos não se destinam a este tipo de uso com bússola. Mas não é raro que tenham uma rosa dos ventos pregada neles, às vezes em situações de inutilidade, às vezes implicando em um erro crasso, como, por exemplo, em mapas dos polos (norte e sul) ou em planisférios que, por força da projeção, tem infinitos nortes, pois os meridianos não convergem para um só ponto. Legenda é o acesso semântico ao mapa. Ou seja, seu dicionário. Os significados tanto podem estar separados em um box ou no rodapé do mapa, como podem estar no interior do próprio mapa. Se os signos utilizados no mapa já estiverem identificados no próprio mapa, quer dizer que ele já está legendado e que a comunicação se completa. E, diga-se, é muito comum encontrar a expressão “Convenções cartográficas” substituindo a palavra “Legenda”, cabendo aqui os comentários já tecidos acerca das convenções. Coordenadas geográficas são importantes quando estamos mapeando fenômenos cujo comportamento varia, por exemplo, em função das latitudes, como é o caso de fenômenos climáticos, ou em função das longitudes, como é o caso dos fusos horários. Mas seriam dispensáveis em cartogramas e equivocadas em anamorfoses. Coordenadas UTM não servem para localizar, pois o mesmo par de coordenada, em função do sistema da projeção, repete-se 60 vezes no planisfério. Mas são boas para tomadas de medidas de áreas e distâncias, por serem plano-retangulares, isso se a curvatura da Terra for insignificante ou tiver sido compensada. A escala é fundamental quando for necessário extrair medidas do mapa (de distâncias ou de áreas), equivocada em planisférios, a não ser que se defina para qual latitude ela é válida em razão das distorções da projeção, e errada em anamorfoses. No caso da escala é ainda necessário o cuidado de não se confundir escala cartográfica com escala geográfica, sob pena da primeira determinar a segunda, restringindo as possibilidades da análise geográfica. Estes elementos seriam um complemento à funcionalidade principal do mapa, sendo que esta é que deveria servir como parâmetro de avaliação daqueles, se não tivessem sido transformados no balizador do pretenso conhecimento sobre Cartografia que se quer dos estudantes. Ou seja, a prescrição virou a medida de um conhecimento, e é precisamente isto que eu chamei de enrijecimento. A invocação às convenções contamina a formação de professores. Conheço um caso em que a professora fez um belíssimo trabalho de campo com os estudantes em torno da escola, mas não deixou que pintassem o córrego de marrom, por mais que ele assim se apresentasse, pois as convenções cartográficas não permitiam. E pior, deu nota baixa para o estudante que insistiu em pintar seu córrego de marrom: tinha que ser azul e ponto!!! No que essa prescrição ajudou a entender da situação ambiental do córrego, afinal? Como poderíamos escapar desta situação? Reconhecendo que mapas são diferentes, servem a propósitos diferentes, são feitos em contextos e por pessoas diferentes. Requerem, portanto, modos diferentes de se trabalhar com eles. Esta pista já foi dada pela Profa. Maria Elena Simielli desde, pelo menos, o início anos 1990, quando ela apontava para os perfis de aluno “leitor crítico” e “mapeador consciente”, entendendo que ambos são importantes, um lidando com produtos prontos e outro produzindo seus mapas com maior liberdade. Tirar a liberdade do mapeamento em nome das convenções e considerar dignos de leitura somente os mapas oficiais são dois caminhos muito equivocados ainda que, infelizmente, abundantes nas práticas escolares. A pergunta situa, ainda um texto que discute rupturas e reencontros da Cartografia com a arte. Isso tem conexões profundas com a pauta do combate à prescritividade da Cartografia, pois a arte, ao tomar o mapa como matéria-prima, deslocando-o de seus contextos habituais, devolve imagens muito problematizadoras sobre o mundo em que vivemos. A quantidade de artistas que mapeiam hoje é muito grande, em nível nacional e internacional. A fruição de obras de arte em/com/ como mapas pode nos provocar muitas questões sobre a espacialidade contemporânea, a exemplo das obras da Bienal do Mercosul de 2008, que teve como tema “Ensaios de Geopoética”. Este é um dos campos que tenho pesquisado atualmente: o que a arte nos re-ensina sobre os mapas? Não tenho dúvida de que, considerando a grande permeabilidade que a escola tem para lidar com a arte e em projetos interdisciplinares, haja uma grande potência de quebrar os grilhões da Cartografia na própria escola.

GIRAMUNDO: Na cultura escolar, o ensino de cartografia costuma ser associado exclusivamente à Geografia. No entanto, diferentes áreas do conhecimento “emprestam” saberes para a cartografia e, além disso, a Geografia não é a única área do conhecimento que utiliza essa ferramenta. Pensando nisso, a senhora entende que a cartografia escolar poderia servir como um ponto de convergência em práticas interdisciplinares nas escolas? Ainda sobre esse assunto, qual o papel da Geografia escolar na construção de projetos interdisciplinares?

PROF.ª GIRARDI: O mapa é ainda um dos elementos fortes da vulgata da Geografia. Isso tem a ver, sem dúvida, com a divisão de saberes e suas imagens canônicas, que se estabeleceram como campos disciplinares na escola moderna. Assim, a biologia tem seus desenhos de anatomia e esquemas de fisiologia, a história suas imagens-fonte, como pinturas, fotos de artefatos e documentos, e a geografia tem mapas e desenhos (depois fotografias) de paisagens e tipos humanos. É um regime de visualidade que acompanha a história da Geografia escolar. Autores da Cartografia crítica identificam o período de ampla disseminação da informática, que implicou em uma imensa disseminação das possibilidades de mapeamento individual, como um indisciplinamento do campo. Isso significa que os esforços da ciência cartográfica no pós-II Guerra Mundial em se estabelecer como ciência autônoma, preocupada com elementos que garantissem a precisão e a eficiência da comunicação do mapa (e não com seu conteúdo), na medida em que estes elementos foram disponibilizados, as áreas específicas, responsáveis pelos conteúdos, passaram a fazer seus próprios mapas, prescindindo do cartógrafo. E perceberam que a forma também condiciona o entendimento do conteúdo. Isto somou-se à chamada “virada espacial”, em que vários ramos da ciência percebem a espacialidade como um elemento relevante na explicação dos fenômenos a que se dedicam. Antropólogos e sociólogos lidando com mapas, como vimos no caso do PNCSA, é somente um sintoma de todo este contexto. Como isso se realizou e se realiza na Geografia? A comunidade geográfica, curiosamente, não soube lidar bem com este processo. Ruy Moreira (2012) chama a isto de perda de identidade linguística da Geografia. As disciplinas de Cartografia nos cursos superiores em Geografia repetiam (e repetem) a fórmula de lidar com os elementos (da precisão e da comunicação) e não com o conteúdo, ou melhor, em como a forma afeta o conteúdo. Resulta disso a complicada situação: a Geografia pensa o espaço de várias maneiras (absoluto, relativo, relacional), mas a Cartografia nos cursos de Geografia só trabalha com o espaço absoluto, raramente com o relacional. Eu e outros professores e professoras de Cartografia nos cursos de Geografia no Brasil (somos poucos!) temos insistido no rótulo “Cartografia Geográfica” para chamar atenção para o fato de que a Cartografia que precisa existir nos cursos superiores de Geografia é aquela que dialoga com as suas perspectivas teórico-metodológicas e epistemológicas e que situa o mapeamento como um dos elementos da produção de imaginações geográficas e do mundo. Mas o caminho é árduo. O rebatimento que isso tem na escola, que é o cerne da pergunta, é que, em tese a formação em Geografia dá autoridade para o trabalho com mapas, mas este trabalho precisa ser na conexão forma-conteúdo. No entendimento de que os fenômenos não obedecem a escalas prévias e que às vezes a escolha da escala produz entendimentos equivocados do fenômeno. Que mapear é para todos e todas e a escolha do melhor instrumento, metodologia ou dispositivo depende do que e com quem se quer mapear. E que um mapa riscado no chão é tão legítimo como um feito com recursos de informática e de geotecnologias. Se o mapa está indisciplinado, é um caminho rico para projetos interdisciplinares, ainda que isso dependa muito mais da disposição docente do que das metodologias disponíveis. A Cartografia escolar evidentemente poderia colaborar em colocar mais e mais à disposição tais metodologias. Mas pode estar vivendo um momento de refluxo.

GIRAMUNDO: A senhora acompanhou de perto a construção das primeira e segunda versões da BNCC. Como avalia as mudanças propostas pela BNCC no que tange ao ensino de Geografia? Acredita que tais mudanças podem ameaçar a presença da Geografia enquanto campo disciplinar autônomo no Ensino Médio. Por fim, essa reforma curricular pode impactar a cartografia ensinada nas escolas?

PROF.ª GIRARDI: Participei da equipe de especialistas de Geografia que elaborou a primeira e segunda versões da BNCC, sob coordenação da Profa. Marisa Valladares. Ela, as Professoras Flaviana Nunes, Ínia Novaes e eu já escrevemos um artigo sobre o processo geral (VALLADARES et al, 2016), publicado na revista Giramundo, e, portanto, não falarei do contexto político mais amplo. Quero, contudo, lembrar que trabalhamos na BNCC até o dia em que houve a admissibilidade do processo de impeachment da Presidenta Dilma Roussef e seu afastamento. Penso ser importante este registro pois há uma mudança imensa da perspectiva institucional em relação à educação antes e depois desta data. Isso se reflete nos documentos. A presença da Geografia enquanto campo disciplinar autônomo no Ensino Médio era garantida até a segunda versão da BNCC e está seriamente ameaçada desde a mudança da LDBEN, na esteira do golpe de 2016. O que não se tem com clareza é a capacidade que teremos de tornar presente a Geografia na formação dos estudantes do Ensino Médio. No que se refere ao Ensino Fundamental, o campo disciplinar se manteve em todas as versões da BNCC. Mas não há continuidade alguma da terceira versão em relação à segunda, ainda que o documento final tenha se apropriado de vários trechos do anterior, talvez por uma questão de economia de trabalho. Isto produziu flagrantes incongruências entre o que foi aproveitado dos textos de apresentação do componente curricular da segunda versão e o que se apresenta como proposta efetiva na versão definitiva. Não tenho me dedicado a estudar a Geografia de um modo geral na BNCC, mas, até onde pude avançar, percebo que o documento propõe uma Geografia conservadora, que adota uma perspectiva principista articulada com um discurso um tanto requentado dos anos 1980, do início da introdução da Geografia crítica na escola. Existe na terceira versão da BNCC uma centralidade da Cartografia que eu acho preocupante. Recentemente, em julho de 2018, em São Paulo, apresentei no Colóquio de Cartografia Escolar, com o Prof. Philipe André, um trabalho com a seguinte questão-provocação: se no último século houve mudanças na Geografia, porque fazemos e ensinamos mapas com a mesma estética dos mapas do Vidal de La Blache? Mesmas cores, mesmo quadro, mesmos elementos, mesmas hierarquias tipográficas… Os estudos de História do Pensamento Geográfico sobre Paul Vidal de La Blache e a Geografia regional francesa apontam a importância que a produção cartográfica teve naquele momento. De fato, podemos considerar que na Geografia vidalina o mapa, ou melhor, o conjunto de mapas temáticos a serem sobrepostos significava um elemento do próprio método geográfico. Mas isso foi a 100 anos. Na última versão da BNCC parece haver um retorno do entendimento da Geografia a um ponto da sua história em que as ciências eram bem definidas com suas imagens canônicas e seus procedimentos específicos. No caso da Geografia, mapas e sobreposições. O que há de aparentemente inovador na última versão da BNCC é a sobrevalorização de um “pensamento espacial”, por sua vez fundamentado em documento curricular estadunidense (NCR,2006) que tem por diretriz o fato de que a economia do mundo é cada vez mais baseada em fenômenos geoespaciais e que, portanto, o SIG daria a base para o pensamento espacial. No caso estadunidense esta proposição é transversal, e articula tanto o entendimento do movimento dos sapos no pântano até a organização de objetos dentro de um armário, passando por decisões sobre o melhor caminho de A até B, sendo o sucesso destes garantido se o aluno tiver desenvolvido um pensamento espacial. A questão, então, é: com que espaço o SIG lida? Com o espaço absoluto. Todas as relações topológicas são referenciadas no espaço absoluto (“geo”referenciadas). E para “rechear” teoricamente esta perspectiva, recorre-se aos princípios da geografia clássica, formuladas justamente quando não havia outra perspectiva de espacialidade no horizonte. Parece então que o pensamento espacial, nestes moldes, funciona como cama de Procusto para a Geografia escolar. Mas esta é uma hipótese, que espero que não seja confirmada, construída até o momento somente com impressões e sensações, sem um estudo mais sistemático. Olhando especificamente para a Cartografia na versão definitiva da BNCC, temos todos os objetos de conhecimento e habilidades constituídos para desembocar no tal pensamento espacial nos moldes do SIG. Não há menção a perspectivas contemporâneas de mapeamento, e também há algumas proposições que, no mínimo, causam algum estranhamento. Uma me chama muito atenção. Desde a edição da terceira versão tenho perguntado a colegas docentes dos vários níveis de ensino quem sabe como fazer blocodiagrama. A princípio me olham com cara de espanto. Em seguida respondem com um não. Alguns convictos, outros envergonhados. Dez de cada dez respondentes desta minha enquete informal não sabem fazer bloco-diagrama, ainda que muitos saibam do que se trata. Alguns se reportam aos belíssimos blocos-diagramas do Prof. Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, mas justificam que derivam mais dos talentos artísticos do que da ciência do ilustre geógrafo. Mas está lá na BNCC, como habilidade a ser construída no 6º. Ano: “(EF06GE09) Elaborar modelos tridimensionais, blocos-diagramas e perfis topográficos e de vegetação, visando à representação de elementos e estruturas da superfície terrestre” (grifos nossos). Não é ler, nem interpretar, é elaborar. A pergunta incômoda é: como docentes do ensino superior ensinarão bloco-diagrama na formação de professores para que estes ensinem para estudantes de 6o. ano, se ninguém sabe como? Chamo a atenção para o bloco-diagrama por que ele é um recurso visual interessante, mas de execução complicada, que depende de uso simultâneo de perspectiva e oblíqua. Mas não poderia ser feito um modelo digital no lugar? Poderia, claro, se um aluno se 6º. ano tivesse familiaridade com SIG, georreferenciamento, geoprocessamento, o que, como vimos, não é uma realidade. Mas não é esta a questão. A questão é que colocar blocodiagrama como habilidade do 6º. ano denota um desconhecimento das técnicas cartográficas e das habilidades matemáticas e abstratas necessárias aos estudantes para que este elabore (e não copie) um bloco-diagrama. Mas como será obrigatório ensinar, possivelmente se transformará em questão de prova do tipo “defina o que é um bloco diagrama” ou “explique as vantagens do uso do bloco diagrama” resolvendo a questão do conteúdo obrigatório. Mas, enfim, bloco-diagrama é uma imagem clássica da Geografia e por isso ganha congruência com o restante da perspectiva adotada na versão final da BNCC. Talvez mais grave do que sobrevalorizar fazeres clássicos da Cartografia, é a consideração, no documento oficial, de que a Cartografia é a única linguagem da Geografia. Nem fotografia, nem cinema, nem desenho, nem música, nem quadrinhos… nenhuma destas linguagens figura na terceira versão como possibilidade de expressões de geografias. Isso nos reforça a hipótese de que linguagens capazes de promover qualquer variação, qualquer abalo no conservador edifício da Geografia da BNCC que tem o espaço absoluto e o principismo como bases da construção de um pensamento espacial cartesiano, foram descartadas. A segunda versão, ao contrário, apostava na diversidade das linguagens e na diversidade de gêneros cartográficos. De todo modo cultivo esperança de que nas práticas educativas aflorem outras possibilidades expressivas, outras espacialidades e outras geografias.

GIRAMUNDO: As mudanças curriculares da BNCC despertaram muitas críticas e, de certa forma, isso contribuiu para que, nos últimos anos, fossem realizados mais debates sobre o currículo escolar. Qual a importância de se debater o currículo de Geografia? Como a cartografia escolar entraria nesse debate?

PROF.ª GIRARDI: A discussão sobre currículo é fundamental para toda a educação formal, não apenas para a Geografia. Durante a participação na BNCC convivemos com várias perspectivas do debate curricular, dentre as quais: a que defende que currículo se faz na escola e não deve se submeter a qualquer base comum, pois esta somente serviria para escravização docente; a que defende que o projeto educacional é uma prerrogativa da escola e da comunidade em que a escola se insere, e que a existência ou não de conteúdos e disciplinas depende unicamente da negociação entre estes agentes, cabendo ao Estado apenas o apontamento de diretrizes gerais por grandes áreas de conhecimento; a que defende a manutenção das disciplinas como garantia de repassar às novas gerações o que a ciência naquela área produziu de relevante, mas com respiros para projetos próprios e interdisciplinares; a que defende a uniformização de procedimentos pedagógicos como garantia de transmissão universal do conteúdo científico e de mensuração da eficiência na transmissão do conteúdo. E em meio a estas, uma miríade de hibridismos. Nas várias versões da BNCC tais perspectivas ganhavam e perdiam espaço de acordo com as variações nas correlações de forças. No documento final, a última perspectiva apontada foi vitoriosa. O debate sobre a Geografia na BNCC, no entanto, só começou a ocorrer depois que o documento já estava pronto, a despeito dos inúmeros esforços feitos pela nossa coordenadora, Profa. Marisa Valladares, em trazer as demandas e perspectivas construídas pela AGB e ANPEGE ao longo do tempo para fundamentar o documento sobre o componente curricular. A AGB, por exemplo, optou por não fazer parte do processo, sob o argumento de que somente naquele momento estava sendo chamada, e que preferiria ter participado do processo de decisão se haveria ou não BNCC. Isso demonstra o quanto é tenso o debate sobre o currículo e os graus de comprometimento com a formulação de política pública que ele impõe. Mas esta situação de entidades científicas não foi vivida somente pelas da Geografia. Ocorreu também na área de História, na área de Dança, na área da Alfabetização, somente para citar as que tiveram maior visibilidade midiática. A comunidade geográfica, no geral, oscilava entre a defesa da escola sem base curricular e a defesa da manutenção da disciplina no currículo, o que em certas circunstâncias compunham posições muito contraditórias, quase esquizofrênicas. O denuncismo das forças que estavam atuando na BNCC também foi uma linha forte da justificativa de não comprometimento com a produção do documento. A manutenção de um campo de saber no currículo oficial é garantia de sua perpetuação acadêmica. Trata-se, sem dúvida, de poder. O caso da Cartografia escolar é emblemático neste sentido. Praticamente não existia Cartografia escolar no Brasil, nem nas escolas e nem enquanto campo científico, antes da edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), somente iniciativas isoladas. Quem frequentou os bancos escolares antes da LDBEN de 1996 certamente se deparou com a atividade de copiar mapas como parte do aprendizado da Geografia escolar. Havia até cadernos específicos para este fim, vendidos em papelarias, que eram parte do material escolar. Às vezes levo um destes para as minhas aulas e pergunto aos alunos o que justificaria existir um caderno chamado “Cartografia”, isto é, que prática de cartografia estes cadernos sustentariam? Copiar e pintar mapas era tarefa da Geografia escolar. Após os PCN, documento ao qual foram incorporadas as proposições da Profa. Maria Elena Simielli de Alfabetização Cartográfica e de Cartografia no Ensino de Geografia, visando ao aluno leitor crítico e ao aluno mapeador consciente, a Cartografia passou a ser a área mais produtiva da Geografia escolar. Esta produtividade se revela pelo grande volume de produções (artigos, teses, dissertações), pela existência de grupos de trabalho em encontros de ensino e de Geografia, pela edição de um evento próprio (Colóquio de Cartografia para Crianças e Escolares), e pela figuração em uma imensa quantidade de práticas realizadas em estágios, residências pedagógicas e PIBID. Isto, sem dúvidas, teve desdobramentos nos currículos de formação de professores, forçando a área de Cartografia a dialogar com o campo da Educação. Na versão definitiva da BNCC, como visto, a Cartografia escolar não só permanece como ganha centralidade, o que deve impactar de algum modo a formação de professores, a produção didática, mas deve manter e consolidar as estruturas acadêmicas constituídas na esteira dos PCN. Caberá, portanto à comunidade científica, uma abordagem crítica em relação ao que está posto como Cartografia na BNCC e a busca de alternativas, ou então referenciar sua produção naquilo que o documento já dá como a verdade, legitimando academicamente suas opções políticas e epistemológicas. Isto, aliás, caberia independentemente de qual versão de documento tivesse composto o documento final da BNCC e um estudo sobre os movimentos da comunidade acadêmica após os PCN, nos últimos 20 anos, poderia iluminar tomadas de decisões políticas para o momento atual.

GIRAMUNDO: No artigo intitulado “Funções de mapas e espacialidade: elementos para modificação da cultura cartográfica na formação em Geografia” (GIRARDI, 2014), a senhora afirmou que: “As disciplinas de Cartografia nos cursos superiores de Geografia no Brasil podem ser consideradas como um lugar de crise na atualidade, crise essa manifestada numa certa perda da razão de ser da Cartografia nos espaços formativos de Geografia”. De que maneira a senhora avalia a forma como, em geral, a Cartografia e disciplinas correlatas são trabalhadas nos cursos de Licenciatura em Geografia? Pensando numa boa formação para o magistério, o que poderia ser melhorado?

PROF.ª GIRARDI: Primeiro, habitar um lugar de crise não é propriamente uma situação ruim. Mas é uma situação incômoda, provocadora de pensamentos e inovações. É um lugar que gosto de estar. Existe hoje uma apropriação muito maior dos mapas pelas diferentes áreas da Geografia do que havia no passado e isso se deve em grande medida à facilitação promovida pelas geotecnologias de um modo geral, e em particular pelos SIG. Sintoma disso é que temos uma imensa produção de atlas temáticos na Geografia atualmente. Isto é bom, por um lado, pois tira da disciplina de Cartografia o peso de lidar somente com os fundamentos técnicos e estéticos envolvidos na produção de mapas, abrindo possibilidades de dialogar com o universo teórico e epistemológico da Geografia. E é bom também porque as diferentes áreas da Geografia ajudam a produzir demandas para inventar novos mapas. Quanto mais mapas e atlas fizermos, mais elementos para refletir sobre os limites da linguagem poderemos construir. Penso que este processo duplo é virtuoso e ajudará a requalificar o mapeamento na Geografia. A questão é que ainda não sabemos o que fazer com uma cultura cartográfica já há muito arraigada nas disciplinas de Cartografia, que foi a tônica da discussão do artigo citado na pergunta. Recuperar a razão de ser da Cartografia nos espaços formativos de Geografia, a meu ver, passa por assumir o mapa como uma das linguagens possíveis para expressar espacialidades. Doreen Massey (2008), David Harvey (2006) e Henri Levebvre (2013) nos ajudam a pensar nestas questões. Assim, no centro das preocupações das disciplinas de Cartografia estariam a linguagem e as espacialidades, de modo a testar limites e possibilidades dos mapas como expressões de geografias. O que mencionei sobre a tônica do “pensamento espacial” que embasa a Geografia da BNCC é o contrário disso, uma vez que estabelece o espaço cartesiano como molde para enquadramento posterior do temário da Geografia, o que está presente tanto na proposição de Vidal de La Blache como na estrutura do SIG, marcando o peso da cultura cartográfica que mencionei e enfatizando o porquê entendo a Geografia da BNCC como conservadora.  Sobre a questão de como a Cartografia e disciplinas correlatas são trabalhadas nos cursos de Licenciatura em Geografia, primeiro preciso apontar que não tenho um levantamento sistemático sobre o tema e irei, portanto, discorrer a partir de impressões e sensações tomadas nos eventos das áreas de Geografia e de Educação e em uma experiência recente de estudos para reforma curricular demandada pela Resolução 02/2015 do CNE (na qual atuei, em parte, como presidente do NDE e, em parte, como coordenadora do Colegiado do curso de Geografia da UFES). De um modo geral, a Cartografia e disciplinas correlatas ainda têm uma abordagem muito mais técnica e tecnológica, voltada ao bacharelado (mesmo quando não há o bacharelado ofertado na instituição). Quando fizemos a reformulação curricular, diagnosticamos que os conhecimentos trabalhados nas disciplinas SIG e Sensoriamento Remoto eram muito pouco, para não dizer nada, aproveitados nos fazeres da licenciatura (estágios, TCC, residência pedagógica, PIBID) e, por outro lado, havia uma demanda por aprofundar conhecimentos em geotecnologias populares, demandas que muitas vezes vinham das escolas onde os estudantes atuavam. Mantivemos, como obrigatórias para licenciatura e bacharelado as disciplinas “Geotecnologias” e “Cartografia Geográfica”, a primeira trabalhando os fundamentos gerais da Cartografia utilizando as geotecnologias populares e a segunda abordando aspectos teóricos, epistemológicos e políticos da linguagem dos mapas como expressão de espacialidades. SIG e Sensoriamento Remoto ficaram obrigatórias somente para o bacharelado (ainda que optativas para a licenciatura) e para a licenciatura uma disciplina integradora obrigatória denominada Pesquisa e Prática em Educação e Geografia, que envolve Geotecnologias e Cartografia Geográfica em metodologia baseada em projetos. Um dos propósitos desta disciplina é a articulação currículo oficial – práticas escolares – ciência, devendo produzir reflexões nesta linha. O ano de 2019 foi o primeiro de vigência do currículo nesta composição, então ainda é cedo para uma avaliação mais aprofundada. Mencionei este exemplo pois acredito que numa boa formação para o magistério é preciso que as disciplinas ajudem a pensar as questões que atravessam aquele universo. Desconheço escola básica que tenha em seus projetos pedagógicos a conversão de coordenada geográfica do sistema sexagesimal para o sistema decimal. Mas ainda em muitos Projetos Pedagógicos de Curso isto consta como conteúdo de Cartografia para a licenciatura em Geografia. Se a escola se localiza em uma franja urbana não formalizada, não seria melhor trabalhar com os estudantes mapeamento em plataformas de código aberto em que o traçado que fazem das ruas passaria a compor o mapa-base daquela plataforma, portanto disponível a toda comunidade? A Cartografia que ensinamos é endógena, ou seja, serve somente para ler os mapas do próprio livro de Geografia e apreender seus conteúdos, ou é exógena, ou seja, auxilia empoderar na linguagem de mapas, dentro dos dispositivos e aplicativos acessíveis, para a solução de problemas territoriais cotidianos? Penso que devemos investir nas duas coisas, atualizar os caminhos leitor crítico e mapeador consciente propostos por Simielli 25 anos atrás.

GIRAMUNDO: A partir de 2020, o Colégio Pedro II vai oferecer um curso de Licenciatura em Geografia. Qual recado ou dica a senhora daria aos futuros licenciandos do curso de Geografia do Colégio Pedro II e, claro, aos estudantes de Geografia de todo o Brasil?

PROF.ª GIRARDI: Fiquei muito feliz com a notícia sobre o curso de Licenciatura em Geografia no Colégio Pedro II e, desde já, os parabenizo e desejo muito sucesso. Penso que é de uma potência extraordinária ter um curso de formação de professores articulado visceralmente com a escola básica. Nunca percam de horizonte que a espacialidade é uma das dimensões da nossa existência: somos seres geográficos, porque humanos. E que isto sirva de parâmetro para as problematizações e questões que são necessárias de serem feitas aos conteúdos curriculares, na sua própria formação ou na educação na escola básica às dinâmicas do nosso mundo, às nossas relações e práticas cotidianas. Para mim este é o mecanismo principal que deve mover as engrenagens que afetam nosso ser professoras e professores. O que neste momento se apresenta no horizonte para o campo da Educação não é, de modo algum, simples nem tranquilizador. Ao contrário, apresenta-se com um contexto de desvalorização da educação e, por conseguinte, das escolas e de professoras e professores, desvalorização esta que contamina as relações na comunidade escolar, podendo fazer com que na escola se instale o que de pior a sociedade tem produzido. Nosso primeiro desafio é tentar, com o máximo de nossas forças, resistir a estas forças retrógradas, violentas, fascistas e constituir a escola como campo aberto à sociedade, gerando condições para embrionar projetos societários mais democráticos, mais justos e mais alegres. Não tenho a menor dúvida de que a Geografia – a ciência, a comunidade geográfica – tem uma imensa contribuição a dar para que isto se concretize.

Entrevista realizada por Tiago Nogueira Galinari Licenciado e bacharel em Geografia (UFV), Mestre em Extensão Rural (UFV) e Doutor em Geografia (UFF) Professor do Colégio Pedro II (Campus Realengo II), coordenador do curso de licenciatura em Geografia. tiagogalinari@yahoo.com.br

 

REFERÊNCIAS

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______. Ruptura e reencontros entre cartografia e arte e seus desdobramentos na educação geográfica contemporânea. Revista Geografia, Literatura e Arte, v. 1, p. 171-184, jan./jun. 2018. GIRARDI, Gisele; ANDRE, Philipe Braga. O que nos ensinam os clássicos sobre a Cartografia Escolar? In: COLÓQUIO DE CARTOGRAFIA PARA CRIANÇAS E ESCOLARES. 10., 2018, São Paulo. Anais… São Paulo: FEUSP, 2018. v. 1, p.148-161.

HARVEY, David. Space as a keyword. In: Castree, N. e Gregory, D. (Org.) David Harvey: a critical reader. Malden e Oxford: Blackwell, 2006.

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MOREIRA, Ruy. Geografia e práxis: a presença do espaço na teoria social crítica. São Paulo: Contexto, 2012.

NATIONAL RESEARCH COUNCIL. Learning to think spatially: GIS as a support system in the K-12 curriculum. Washington: National Research Council Press, 2006.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1997. VALLADARES, Marisa T. R.;

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Fonte: Revista GIRAMUNDO – http://cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO/article/view/2564